(Texto extraído do livro “O Segredo da flor de Ouro” – C.G. Jung e R. Wilhelm - Vozes - 1971)
A união dos opostos num nível mais alto da consciência, como já mencionamos, não é uma questão racional e muito menos uma questão de vontade, mas um processo de desenvolvimento psíquico, que se exprime em símbolos. Historicamente, este processo sempre foi representado através de símbolos e ainda hoje o desenvolvimento da personalidade individual é figurado mediante imagens simbólicas. Tais fatos se me apresentaram da seguinte maneira: os produtos das fantasias espontâneas, de que tratamos acima, se aprofundavam e se concentravam progressivamente em torno de formações abstratas, que parecem representar “princípios”, no sentido dos “archai” gnósticos. Quando as fantasias tomam a forma de pensamentos, emergem formulações intuitivas de leis ou princípios obscuramente pressentidos, que logo tendem a ser dramatizados ou personificados.
Se as fantasias forem desenhadas, comparecem símbolos que pertencem principalmente ao tipo do “mandala”. Mandala significa círculo e particularmente círculo mágico. Os mandalas não se difundiram somente através do oriente, mas também são encontrados entre nós. A Idade Média e em especial a baixa Idade Média é rica de mandalas cristãos. Em geral o Cristo é figurado no centro e os quatro evangelistas ou seus símbolos, nos pontos cardeais. Esta concepção deve ser muito antiga, porquanto Horus e seus quatro filhos foram representados da mesma forma, entre os egípcios. (Como se sabe, Horus e seus quatro filhos têm uma relação estreita com Cristo e aos quatro evangelistas). Mais tarde, encontramos um inegável e interessante mandala em Jacob Boheme, em seu livro sobre a alma. É evidente que ele representa um sistema psicocósmico, de forte coloração cristã. É o “olho filosófico”, ou o “espelho da sabedoria”, denominações estas que mostram de modo claro tratar-se de uma summa de sabedoria secreta. A maioria dos mandalas tem a forma o quatérnio, o que lembra o número básico: a tetraktys de uma flor, de uma cruz ou roda, tendendo nitidamente para pitagórica. Entre os índios Pueblo os mandalas são desenhados na areia, para uso ritual. Entretanto, os mandalas mais belos são os do budismo tibetano. Os símbolos de nosso texto acham-se representados nesses mandalas. Encontrei também desenhos mandálicos entre doentes mentais, entre pessoas que certamente não tinham qualquer ideia das conexões aqui mencionadas. Algumas de minhas pacientes de sexo feminino não desenhavam, mas dançavam mandalas. Na Índia, isto se chama: mandala nritya, que significa dança mandálica. As figurações da dança têm o mesmo sentido que as do desenho. Os próprios pacientes quase nada podem dizer acerca do sentido simbólico dos mandalas, mas se sentem fascinados por eles. Reconhecem que exprimem algo e que atuam sobre seu estado anímico subjetivo.
Nosso texto promete “revelar o segredo da Flor de Ouro do grande Uno”. A flor de ouro é a luz, e a luz do céu é o Tao. A flor de outro é um símbolo mandálico que já tenho encontrado muitas vezes nos desenhos de meus pacientes. Ela é desenhada a modo de um ornamento geometricamente ordenado, ou então como uma flor crescendo da planta. Esta última na maioria dos casos é uma formação que irrompe do “fundo da obscuridade, em cores luminosas e incandescentes, desabrochando no alto sua flor de luz (num símbolo semelhante ao da árvore de Natal). Tais desenhos exprimem o nascimento da flor de outro, pois, segundo o Hui Ming Ging, a “vesícula germinal” é o “castelo de cor amarela”, o “coração celeste”, os “terraços da vitalidade”, o “campo de uma polegada da casa de um pé”, a “sala purpúrea da cidade de jade”, a “passagem escura”, o “espaço do céu primeiro”, o “castelo do dragão no fundo do mar”. Ela é também chamada a “região fronteiriça das montanhas de neve”, a “passagem primordial”, o “reino da suprema alegria”, o “país sem fronteiras” e o “altar sobre o qual consciência e vida são criadas”. “Se o agonizante não conhecer este lugar germinal”, diz o Hui Ming Ging, “não encontrará a unidade de consciência e vida nem mesmo em mil nascimentos, ou dez mil eons”.
O princípio, no qual tudo ainda é um e que portanto parece ser a meta mais alta, jaz no fundo do mar, na escuridão do inconsciente. Na vesícula germinal, consciência e vida (ou “essência”e “vida”, isto é, sing-ming) são ainda “uma só unidade”, “inseparavelmente misturada como a semente do fogo no forno da purificação”. “Dentro da vesícula germinal está o fogo do soberano”. “Todos os sábios começaram a sua obra pela vesícula germinal”. Notem-se as analogias com o fogo. Conheço uma série de desenhos de mandalas europeus, onde aparece uma espécie de semente vegetal envolta em membranas, flutuando na água. A partir do fundo, o fogo sobe e penetra a semente, incubando-a de tal modo, que uma grande flor de ouro cresce da vesícula germinal. Esta flor simbólica refere-se a uma espécie de processo alquímico de purificação e de enobrecimento; a escuridão gera a luz e à partir do “chumbo da região da água” cresce o ouro nobre; o inconsciente torna-se consciente, mediante um processo de vida e crescimento. (Em total analogia com isto, lembremos a Kundalini da Ioga hindu). Desse modo se processa a unificação de consciência e vida.
Quando meus pacientes projetam tais imagens, não o fazem sob sugestão; elas ocorriam muito antes que eu conhecesse seu significado ou suas relações com as práticas do oriente. Essas imagens brotam espontaneamente de suas fontes. Uma delas é o inconsciente, que produz de modo natural fantasias dessa espécie. A outra fonte é a vida que, quando vivida com plena devoção, proporciona um pressentimento do si-mesmo, da própria essência individual. Ao expressar-se esta última nos desenhos, o inconsciente reforça a atitude de devoção à vida. De acordo com a concepção oriental, o símbolo mandálico não é apenas expressão, mas também atuação. Ele atua sobre seu próprio autor. Oculta-se neste símbolo uma antiquíssima atuação mágica, cuja origem é o “círculo de proteção”, ou “círculo encantado”, cuja magia foi preservada em numerosos costumes populares. A meta evidente da imagem é traçar um “sulcus primigenius”, um sulco mágico em redor do centro, que é o templo ou temenos (área sagrada) da personalidade mais íntima, a fim de evitar uma possível “efluxão”ou preservá-la, por meios apotropaicos, de uma eventual distração devido a fatores externos. As práticas mágicas não são mais do que projeções de acontecimentos anímicos, que refluem sobre a alma como uma espécie de encantamento da própria personalidade, isto é, o refluxo da atenção apoiada e mediada por um grafismo. Em outras palavras, é a participação de uma área sagrada interior, que é a origem e a meta da alma. É ela que contém a unidade de vida e consciência, anteriormente possuída, depois perdida, e de novo reencontrada.
A unidade de vida e consciência é o Tao, cujo símbolo, a luz branca central, é semelhante à que é mencionada no Bardo Todol. Esta luz habita na “polegada quadrada”, no “rosto”, isto é, entre os dois olhos. Trata-se da visualização do “ponto criativo”, cuja intensidade é desprovida de extensão, e que deve ser pensada juntamente com o espaço da “polegada quadrada”, símbolo daquilo que tem extensão. Ambos reunidos são o Tao. A essência ou consciência (sing) se exprime mediante o simbolismo da luz e representa a intensidade. A vida (ming) deverá pois coincidir com a extensão. O caráter da primeira é yang, enquanto que o da segunda é yin. A mandala já mencionada de uma jovem sonâmbula de quinze anos, que observei há trinta anos, tem no centro uma “fonte de energia da vida” sem extensão, cuja emanação espontânea colide com um princípio espacial oposto, em perfeita analogia com a idéia fundamental do texto chinês. O “aproximar-se circundando”, ou “circumambulatio”, exprime-se, em nosso texto, através da ideia de “circulação”. Esta última não significa apenas o movimento em círculo, mas a delimitação de uma área sagrada por um lado e, por outro, a ideia de fixação e concentração; a roda do sol começa a girar, isto é, o sol é vivificado e inicia seu caminho; em outras palavras, o Tao começa a atuar e assume a direção. A ação converte-se em não-ação; tudo o que é periférico é subordinado à ordem que provém do centro. Por isso se diz: “O movimento é outro nome para significar domínio”. Psicologicamente, a circulação seria o ato de “mover-se em círculo em torno de si mesmo”, de modo que todos os lados da personalidade sejam envolvidos. “Os pólos de luz e de sombra entram no movimento circular”, isto é, há uma alternância de dia e noite.
“A claridade do paraíso se alterna com a mais profunda e terrível das noites”. O movimento circular também tem o significado moral da vivificação de todas as forças luminosas e obscuras da natureza humana, arrastando com elas todos os pares de opostos psicológicos, quaisquer que sejam. Isto significa autoconhecimento através da auto-incubação (o “tapas” hindu). Uma representação originária e análoga do ser perfeito é o homem redondo de Platão, que reúne os dois sexos. Encontramos um dos paralelos mais impressionantes em relação ao que acabamos de dizer, na descrição que EDWARD MAITLAND, colaborador de ANNA KINGSFORD, esboçou acerca de sua experiência central. Na medida do possível usarei suas próprias palavras. Ele descobrira que ao refletir sobre uma ideia, era como se ideias afins ganhassem viabilidade, em longas séries. Aparentemente, remontavam até sua fonte e esta, para ele, era o espírito divino. Concentrando-se nessas séries, ele tentou avançar até sua origem.“Eu não dispunha de qualquer conhecimento, nem tinha qualquer expectativa quando me decidi a fazer esta experiência. Simplesmente, estava cônscio dessa capacidade... sentado à minha escrivaninha, pronto para anotar os acontecimentos segundo as séries em que se sucediam. Resolvi manter a consciência externa e periférica, sem preocupar-me com o distanciamento de minha consciência interna e central. Não sabia se poderia voltar à primeira, caso a deixasse, nem se poderia lembrar-me dos acontecimentos experimentados. Mas finalmente o consegui, com um grande esforço; a tensão provocada pelo esforço de manter os dois extremos da consciência ao mesmo tempo era considerável! No começo senti como se estivesse subindo uma longa escadaria, da periferia para o ponto cósmico, o solar e o meu próprio. Os três sistemas eram diversos e, ao mesmo tempo, idênticos... Finalmente, num último esforço... consegui concentrar os raios de minha consciência no foco almejado. Nesse instante, como se uma repentina combustão fundisse todos os raios numa unidade, ergueu-se diante de mim uma prodigiosa, inefável luz branca e brilhante cuja força era tão intensa que quase caí para trás... Sabendo intimamente que não era necessário perscrutar além dela, decidi certificar-me de novo; tentei atravessar esse brilho que quase me cegava, a fim de ver o que continha. Com grande esforço o consegui... Era a dualidade do Filho... o oculto tornara-se manifesto, o indefinido, definido, o não-individuado, individuado: Deus como Senhor, que prova através de sua dualidade, que é substância e força, amor e vontade, feminino e masculino, mãe e pai”. Assim, ele considerou Deus como dois em um, da mesma forma que o homem. Além disso, observou algo que é sublinhado em nosso texto, isto é, a “suspensão da respiração”. Afirma que a respiração comum cessa, dando lugar a uma respiração interna, como se outra pessoa, alheia a seu organismo físico, respirasse por ele. Acrescenta que tal ser poderia consubstanciar a “enteléquia” de Aristóteles, ou o “Cristo interno” do apóstolo Paulo, “a individualidade espiritual e substancial engendrada dentro da personalidade física e fenomênica representando, portanto, o renascimento do homem num plano transcendental”. Esta experiência autêntica contém todos os símbolos essenciais do nosso texto. O próprio fenômeno, isto é, a visão da luz, é uma experiência comum a muitos místicos, e indubitavelmente muito significativa, pois em todas as épocas e lugares compareceu como o incondicionado, reunindo em si a maior força e o sentido mais profundo.
HILDEGARD VON BINGEN, personalidade significativa (mesmo deixando de lado sua mística), escreve acerca de uma visão central que teve bem semelhante à experiência acima citada: “Desde minha infância”, diz ela, “vejo constantemente uma luz em minha alma, mas não com o olhar externo, ou através dos pensamentos do coração; os cinco sentidos também não tomam parte nesta visão. A luz que percebo não se localiza, mas é muito mais clara do que uma nuvem transpassada pelo sol. Não consigo distinguir nela nem altura, nem largura ou comprimento... O que vejo e aprendo nessa visão perdura por muito tempo em minha memória. Vejo, ouço e sei ao mesmo tempo, e aprendo o que sei num instante... Não reconheço nenhuma forma nesta luz, se bem que de vez em quando nela vejo outra luz que, para mim, se chama a luz viva... enquanto a contemplo me rejubilo, e toda a dor e tristeza se desvanecem na minha memória...”
Por minha parte, conheço poucas pessoas que tiveram tais vivencias por experiência direta. Na medida em que posso alcançar um fenômeno deste tipo, acho que se trata de um estado de consciência agudo, intenso e abstrato, de uma consciência “isenta” (v. abaixo) como HILDEGARD indica, tal estado permite a conscientização de campos do acontecer anímico, que de outro modo ficariam encobertos pelo obscuro. O fato de que em conexão com tal experiência haja um desaparecimento freqüente das sensações gerais do corpo, indica que é retirada destas últimas suas energias específica; provavelmente, mediante sua transformação, a lucidez da consciência é exaltada. De um modo geral, o fenômeno é espontâneo, aparecendo ou desaparecendo por impulso próprio. Seu efeito é espantoso e quase sempre soluciona complicações anímicas, liberando a personalidade interna de confusões emocionais e intelectuais, e criando assim uma unidade de ser, experimentada em geral como uma “liberação”. A vontade consciente não pode alcançar uma tal unidade simbólica, uma vez que a consciência, nesse caso, é apenas uma das partes. Seu opositor é o inconsciente coletivo que não compreende a linguagem da consciência. É necessário contar com a magia dos símbolos atuantes, portadores das analogias primitivas que falam ao inconsciente. Só através do símbolo o inconsciente pode ser atingido e expresso; este é o motivo pelo qual a individuação não pode, de forma alguma, prescindir do símbolo. Este, por um lado, representa uma expressão primitiva do inconsciente e, por outro, é uma ideia que corresponde ao mais alto pressentimento da consciência.
O desenho mandálico mais antigo que conheço é a “roda do sol” paleolítica, recentemente descoberta na Rodésia. Ela também se baseia no número quatro. Sinais que remontam a uma tal antiguidade da história humana repousam naturalmente, nas camadas mais profundas do inconscientes e são captados lá, onde a linguagem consciente se revela de uma impotência total. Tais realidades não devem servir de campo para a imaginação, mas sim crescer novamente das profundezas obscuras do esquecimento, a fim de expressar os pressentimentos extremos da consciência, e a intuição mais alta do espírito: assim se funde a unidade da consciência presente com o passado originário da vida.